Herança digital, direito à intimidade e criação da figura do inventariante digital

Herança digital, direito à intimidade e criação da figura do inventariante digital

Nova figura jurídica pode trazer avanços no que se refere à organização de dados de pessoas falecidas, mas também tornar processo de inventário ainda mais moroso e custoso para herdeiros

Anelise Valente e Thaynara Andretta

No início do último mês de setembro, foi julgado o REsp 2.124.424/SP, que criou um importante precedente relacionado à sucessão dos bens digitais e também uma figura inovadora para o Direito: o Inventariante Digital.

Em resumo, o caso trata da tentativa judicial de acesso às informações contidas em um computador deixado por pessoa falecida. Como nenhum dos sobreviventes tinha a senha para acessar o conteúdo contido no aparelho, ajuizou-se ação buscando ordem judicial que determinasse a expedição de ofício ao fabricante do aparelho para que este procedesse com o desbloqueio.

Os principais objetivos com o acesso eram: identificar a eventual existência de bens com valor econômico e acessar bens de valor afetivo, a exemplo de registros fotográficos. Parece simples, mas as questões levantadas no acordão são relevantes e merecem atenção.  

Durante a análise do caso, a relatora ministra Nancy Andrighi trouxe luz a uma questão essencial: A PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, como direito à intimidade do falecido e, eventualmente, de terceiros.

Ou seja, seria correto o judiciário liberar acesso irrestrito e integral ao conteúdo do computador para os familiares sobreviventes? E se, para além de bens de cunho econômico e afetivo, existirem segredos e questões intimas do de cujus e que ele não tinha interesse que fossem compartilhadas com outros membros da família?

Como consta na Ementa do Acórdão: “(…) é dever do juiz se cercar de todos os cuidados e garantias para compatibilizar, de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de TODOS os bens do falecido; de outro, os direitos de personalidade, especialmente a intimidade do falecido e/ou de terceiros.”

Uma questão extremamente válida, intrigante e relevante! Mas e qual seria a solução?

A própria relatora propôs uma solução diferenciada e inédita: a criação de uma nova figura no procedimento de inventário, a do Inventariante Digital*, que seria um profissional especializado, o qual acessaria o conteúdo em completo sigilo, fazendo a listagem de todos os arquivos que estiverem disponíveis no dispositivo acessado.

A lista completa deverá ser encaminhada unicamente para o juiz do inventário, que se torna responsável por decidir o que é patrimônio transmissível e pode ser liberado aos familiares solicitantes, bem como o que são bens de cunho privado, protegidos pelo direito à intimidade e, portanto, intransmissíveis (devendo ser mantidos sob sigilo).

A solução é inovadora e a criação de uma nova figura jurídica pode trazer avanços no que se refere à organização de dados. Contudo, pode tornar o processo de inventário ainda mais moroso e custoso para os herdeiros, já que a ideia é que o inventariante digital atue como um auxiliar da Justiça, que se equipara a um perito. 

Também há que se considerar preocupações relevantes sob o ponto de vista da transparência e da isonomia, pois o Inventariante Digital, ao dispor de acesso privilegiado a documentos, bens, senhas e informações digitais, concentra em si um poder de gestão exclusivo que não é igualmente acessível aos demais interessados.

Ainda que o magistrado tenha acesso ao mesmo conteúdo, a família – que é a verdadeira e legítima destinatária da partilha – fica em posição de dependência do crivo de uma terceira pessoa sobre o conteúdo que poderá ou não acessar e sem possibilidade de fiscalizar diretamente os atos praticados.

Essa situação traz riscos concretos, por exemplo, a ocultação ou manipulação de dados e das informações patrimoniais pela falta de transparência, bem como a falta de publicidade do que realmente foi encontrado que os herdeiros deveriam ter meios plenos de acompanhar e contestar cada ato do inventariante.

Outra reflexão importante é a questão que trouxe à tona toda essa discussão perante o judiciário: a necessidade em preservar a intimidade do falecido. Se a premissa é a preservação da privacidade e intimidade, por qual motivo o perito e o magistrado (que são estranhos ao de cujus) poderiam ter acesso a essas informações íntimas relevantes? Não há justificativa plausível para que os herdeiros sejam privados da mesma transparência. Afinal, o patrimônio em questão não pertence ao inventariante, tampouco ao juiz, mas sim ao conjunto da sucessão, à família.

É contraditório buscar proteger a privacidade de um falecido em relação a assuntos íntimos se, ao mesmo tempo, permitirmos que pessoas estranhas a ele tomem conhecimento desses fatos.

A melhor alternativa para esse imbróglio seria a manifestação de vontade do falecido expressamente redigida em testamento ou outro instrumento válido, no sentido de que bens digitais de caráter estritamente pessoal – como conversas privadas e arquivos íntimos – sejam mantidos em sigilo. Dessa forma, garante-se que tais conteúdos sejam excluídos ou mantidos inacessíveis, evitando que herdeiros ou terceiros tenham acesso a informações que possam violar a intimidade do de cujus.

Importante frisar que foi apresentado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4066/2025 (apensado ao PL 3050/2020) que, conforme ementa, visa dispor sobre a sucessão de bens digitais, estabelecer procedimentos para o acesso, gestão e transmissão desses bens e criar a figura do inventariante digital. O mesmo, quando aprovado, deve trazer mais pontos de solução e também de discussão sobre a matéria.

Portanto, entendemos que a figura do inventariante digital só se justifica se acompanhada de mecanismos claros de auditoria, fiscalização e disponibilização dos documentos às partes, garantindo que o acesso não se torne privilégio exclusivo, mas sim instrumento de justiça e equidade no inventário.

Referência:

* Ponto 40 do voto do Acórdão do Resp 2.124.424/SP – “O inventariante digital não se confunde com o inventariante expressamente previsto no Código de Processo Civil, nomeado no processo de inventário para representar o espólio e cuidar da partilha. Por isso, o inventariante digital não se submeterá à ordem de preferência prevista no art. 617 do CPC. O profissional deverá ter especial expertise digital e ser da confiança do juiz. Haverá, pois, dois inventariantes, com encargos específicos, porque as funções são diferenciadas, devendo haver respeito aos limites de atividade de cada um.”

Anelise Valente e Thaynara Andretta são advogadas no Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica.

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